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Courtney Barnett é a artista que eu mais ouvi neste ano de 2022. A compositora e cantora australiana, que tem 36 anos e uma década de carreira, faz um indie rock de garagem contemporâneo mas que também caberia em qualquer discografia dos anos 90. Acordes abertos. Guitarra, baixo, bateria. Um jeito de cantar deliciosamente displicente. Me fez bem passar o ano dentro desse universo sonoro.
Também me fez bem deixar-me seduzir pela sua poesia peculiar. Em Avant Gardener, por exemplo, Courtney escreve sobre a manhã em que estava cuidando do jardim quando de repente teve um ataque de pânico. Em Depreston, ela narra a busca por uma nova casa para morar em Melbourne, Austrália. Observar os vizinhos a partir da janela da sala é o mote de Rae Street.
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"Things Take Time, Take Time", seu mais recente trabalho, saiu no fim de 2021 e venho escutando-o obsessivamente. Busco na memória e me acho escutando-o nos mais diversos momentos deste ano, em quartos de hotel e aviões, em manhãs sonolentas, tardes produtivas, noites de sonho, nas pequenas jornadas de metrô e nas longas caminhadas pela cidade, nas quatro estações e na sala de espera de um hospital.
Passar tanto tempo escutando o mesmo álbum se revelou uma experiência transcendental pra mim.
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Essa transcendência, eu acho, se deu por um par de razões. A primeira é bem pessoal. Quando eu tinha 15 ou 16 anos, ouvir canções rápidas e diretas de rock, como as que Courtney ainda faz, era o suficiente para que o mundo à minha volta fizesse um pouco mais de sentido.
A música era mais do que uma companhia. Muito mais: era ‘alguém’ que conversava comigo. Eu é que a escutava, é claro, mas, de alguma forma inexplicável pra mim, eu também sentia que eu era escutado. Foi assim que me apaixonei pela música e descobri nela um abrigo. Um amigo.
Neste sentido, Courtney me oferece uma reconexão comigo mesmo.
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Suas letras às vezes apresentam a visão de personagens que se sentem desajustados em situações sociais ou em relações amorosas. Louvam suas tentativas e seus erros. Ela está sempre a observar aqueles que estão "ao lado do caminho", como canta o Fito Paez.
Um exemplo: Elevator Operator, que abre seu segundo disco.
Feeling sick at the sight of his computer
He dodges his way through the Swanston commuters
Rips off his tie, hands it to a homeless man
Sleeping in the corner of a metro bus stand and he screams
"I'm not going to work today
Going to count the minutes that the trains run late
Sit on the grass building pyramids out of Coke cans"
Outras vezes, ela trata do eterno desajuste entre o que queremos ser e o que de fato conseguimos fazer. Um exemplo: Oh The Night, que fecha o último álbum.
Sorry that I've been slow, you know it takes a little / Time for me to show / How I really feel, won't you meet me somewhere in the middle? / On our own time zone.
Numa entrevista, ela conta que essa música nasceu de sua dificuldade em se comunicar com um amigo por mensagens de texto. É uma das várias canções de Courtney que falam de uma vida sob a ótica do que acontece no vai e vem do cotidiano: mensagens demais para responder, tempo de menos para acompanhar a vida de tanta gente de quem gostamos, quem aí não carrega essa angústia dentro de si?
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Em novembro, eu e a Ju entramos num ônibus intermunicipal que nos tirou de Londres e nos levou a Brighton, no litoral inglês. Fomos ver o show de Courtney Barnett na cidade. Junto com um baterista e um baixista que a acompanham há quase uma década, ela colocou fogo no lugar. Chorei três vezes no show, uma delas por causa de uma música que eu nunca tinha escutado antes - a já citada Depreston - só por causa dos primeiros versos:
You said we should look out further / I guess it wouldn't hurt us / We don't have to be around all these coffee shops / Now we've got that percolator / Never made a latte greater / I'm savin' 23 dollars a week.
Dias depois, me dediquei à letra dessa música palavra por palavra, e me emocionei quando caí aqui:
It's got a lovely garden / And a garage for two cars to park in / Or a lot of room for storage if you've just got one / And it's going pretty cheap, you say / Well, it's a deceased's estate / Aren't the pressed metal ceilings great / Then I see the hand rail in the shower / A collection of those canisters for coffee tea and flower / And a photo of a young man in a van in Vietnam / And I can't think of floor boards anymore / Whether the front room faces south or north / And I wonder what she bought it for
Quanta beleza há nessa cena? Eu gosto muito de como ela está ali descrevendo as coisas que acontecem em uma visita de imóvel até que, de repente, sua atenção se desloca para a poesia que ela vê na presença dos potes e da foto. Vale a pena ler a letra inteira.
Outro choro causado por Courtney veio de Sunfair Sundown:
Sometimes it's hard, getting lost, you say is a fine art / Put the map down and follow the stars / Shall we leave? Are you sure? / Let me grab my bag, we can sneak out through the side door
Eu consigo ver dois amigos conversando numa festa e subitamente tendo a ideia: vamos embora? A cumplicidade da amizade, a coragem que ganhamos quando estamos em dois, o alívio de deixar uma festa ruim com uma companhia boa.
Depois fui pesquisar sobre a música. Courtney contou à Apple Music que ela a compôs "numa dessas noites em que você se sente tomado por um sentimento de gratidão pelas amizades. Eu comecei a escrever no dia seguinte, apenas por causa dessa sensação, tão bonita, tão grande - foi simples assim". A camaradagem que só existe nas amizades: como é bom saber que alguém ainda escreve sobre isso.
Naquela noite fria de Brighton, enfrentamos a volta do show (de trem, pela madrugada) tomados por um sentimento de gratidão por Courtney. Imensamente cansados, completamente felizes.
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A segunda razão pela qual a obra de Courtney me bateu forte, acho, está ligada à estranheza que têm me causado os caminhos narrativos da música atual, ao menos da música que está mais próxima de mim. Em geral, os letristas têm rejeitado o cotidiano e estão mais interessados em soarem filosóficos, enigmáticos, e - tentei fugir do termo, mas não vai dar - lacradores.
Recuperando a ideia da música como um diálogo, é como se sentar num bar com amigos que só discursam e não conversam. Tá todo mundo querendo soar sábio e definitivo o tempo todo.
As canções de Courtney, ao contrário, elegem a incerteza como protagonista. Acho que é esse o presente que essa artista me dá: ouço suas músicas e logo depois enxergo o mundo como um lugar mais interessante, um tanto engraçado e, por isso, um pouco menos hostil. Relembro que a vida vai ser sempre meio estranha e imperfeita mesmo. E que as coisas que nos acontecem entre o café da manhã e o chá da noite são tão importantes quanto as grandes questões do nosso tempo.
Como uma frase de Goethe que achei num livro esses dias, o importante da vida é a vida e não o resultado da vida.
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Minha seleção feminina em 2022
Quando comecei a repassar o ano de 2022 nos termos o que é que eu escutei de mais legal este ano, percebi que a lista é quase toda de mulheres. A Ju vai ler isso e pensar "sim, isso não é novidade pra mim", porque, faz um tempo, ela me chamou a atenção para o fato de que há anos eu tenho curtido escutar mais artistas mulheres do que homens. E é verdade. Eu também tenho curtido mais conversar com mulheres do que homens. Fiz mais amigas do que amigos neste ano.
Trago aqui, então, outras seis mulheres que não saíram dos meus ouvidos em 2022 - e ao final deixo um pequeno presente para quem lê a newsletter: preparei uma playlist com as 3 músicas que mais gosto dessas artistas. :)
Adriana Vasques (ITA/UK)
Conheci a Adriana aqui em Londres (contei parte dessa história na última edição da newsletter). Trabalhei no lançamento do seu disco, “This is Me”, e no show de estreia, que rolou há três semanas numa igreja cinematográfica de Hampstead. Adriana mistura muito bem bossa nova, funk, acid jazz, folk, música italiana. E a produção do Chris Franck é impecável.
Emahoy Tsegue-Maryam Guèbrou (ETI)
Quando o piano de Emahoy tocou pela primeira vez as caixas de som lá de casa, foi como se o espaço subitamente ficasse abençoado. De repente tudo parecia calmo, bonito, simples e profundo. Aquele disco (“Ethiopiques: Emahoy”) é o segundo que mais escutei em 2022. Homesick Part. 1 é a música que me abriu as portas para o universo de Emahoy - que, além de tudo, é freira e acaba de completar 99 anos.
Graciela Soares (BRA)
Diferentemente de todas as citadas aí em cima, a primeira vez que eu ouvi Graciela foi ao vivo. Ela é parte da formação atual da Cao Laru, e fui apresentado a ela quando produzi, junto com Nicola Lemos, a turnê do grupo pela Inglaterra em outubro deste ano. Grá tem uma voz forte e doce ao mesmo tempo. Canta afinadíssimo, toca percussão com vigor, compõe bonito e dança que é um absurdo. Ninguém tira o olho dela quando ela está em cima do palco. Fora deles, é das presenças mais serenas - porque ser artista é importante, mas ser uma pessoa legal é ainda mais. Tomara que o disco dela saia logo!
Laura Marling (UK)
A artista que mais escutei nos últimos 10 anos. Tive a sorte de vê-la ao vivo em Cambridge, no ano passado, e saí de lá como se eu tivesse acabado de assistir ao Cirque du Soleil. Aquela sensação de grandiosidade. Mas ela estava sozinha no palco, só violão e voz… Meu disco preferido é “Once I Was An Eagle”.
Norma Tanega (EUA)
Me apaixonei de cara pelo folk irreverente, estradeiro e com cheiro de mato da cantora, compositora, violonista e professora norte-americana Norma Tanega. Sua música mais famosa é "Walkin' My Cat Named Dog", com a qual ela alcançou fama nos anos 60, mas depois ela caiu no ostracismo. Norma namorou a cantora britânica Dusty Springfield, para quem também trabalhou escrevendo canções.
Sílvia Perez Cruz (ESP)
Quem me apresentou a Silvia foi a Ju. Escrevi na edição número 4 sobre o arrebatamento que senti no show que vimos em Madrid. Ao vivo ou em disco, a Silvia preserva algo de artista antiga, não em sentido nostálgico bobo, mas numa relação de pele que ela parece ter com a música.
Ótimas indicações. Obrigada por compartilhar!