É o primeiro show que assisto no Barbican. "Barbican" é um desses nomes que sempre me soaram importantes. Imponentes. Assim como "Hermeto''.
Quem primeiro se apresenta é a National Youth Jazz Orchestra, criada em 1965. Talvez a sua aluna mais famosa tenha sido Amy Winehouse.
Como diz o nome, a orquestra é formada por jovens. Da plateia superior, onde estou, arrisco dizer que a maioria tem entre 20 e 25 anos. Como é bom ver jovens no palco. Eles estão nervosos, empolgados, felizes e envergonhados.
Depois vem o intervalo de 20 minutos. Isso é comum aqui na Inglaterra, não sei se na Europa. A maioria se levanta para ir ao banheiro ou comprar uma cerveja.
Eu pego um café. Olho em volta. Ao menos 3 bruxos passaram por mim. Em shows de figuras muito fortes visualmente, como Hermeto, sempre pinta uns sósias.
Volto para o meu lugar. Um apresentador está no centro do palco e diz que é com muita alegria que ele anuncia a entrada de Jovino Santos Neto, que irá reger a Orquestra.
(Horas antes, numa reunião banal de trabalho, meu amigo e parceiro de curadoria na Solar, Mauricio Ávila, me alertou que o Jovino era genial).
Jovino é um dos mais importantes músicos brasileiros. Gravou discos históricos. Tocou com Hermeto de 77 a 92. Vive nos Estados Unidos. Procurem saber.
Junto com Jovino entra a Orquestra, que agora está completa. Conto: são 32 músicos e musicistas. Estão todos comportadamente sentados, segurando saxofones, flautas, trompetes, trombones, piano, baixo, percussão, bateria, guitarra, teclados, sintetizadores, violinos.
Ao olhar de Jovino, os 32 começam a falar todos ao mesmo tempo, em português, numa cacofonia nada britânica. De repente param, e cada um deles se levanta e fala uma sílaba, formando palavras em português, num jogral de vozes imensamente brasileiro. Encerram gritando "Seu Burro Na Carroça!".
(Os gringos piram).
Então finalmente Jovino anuncia Hermeto Pascoal, "meu professor e guru musical". O Barbican, que está semi-lotado, explode em palmas.
Hermeto entra no palco caminhando devagar. Mas seus pés dançam a cada vagaroso passo. Ele faz um gesto de agradecimento à plateia. A banda entra junto com ele.
O palco agora está dividido exatamente ao meio: do lado esquerdo, Hermeto (teclado) e Itiberê Zwarg (baixo), André Marques (piano, flauta, percussão), Jota P (sax, flauta), Fábio Pascoal (percussão) e Ajurinã Zwarg (bateria). Na direita, a Orquestra.
O repertório é formado por peças escritas e arranjadas por Hermeto nos anos 70 e que nunca haviam sido tocadas ao vivo, até agora. Logo fica clara a dinâmica do show: a banda de Hermeto toca uma música, a Orquestra toca outra.
Logo também fica clara a dinâmica do Hermeto no show: a maior parte do tempo ele vai ao teclado, toca por um tempo e depois sai do palco, caminhando (e dançando) em direção a um banco instalado próximo ao piano, onde senta-se.
(Hermeto tem 85 anos).
Na maior parte das vezes, sua performance será ao teclado, onde toca apenas com a mão direita, deixando a esquerda parada. Às vezes toca uma música inteira, às vezes não - quando não, ele deixa o palco da mesma forma que entrou, caminhando-dançando devagar.
Me encanto com essa coisa de tocar e depois ir pro banco. É tipo se o Pelé, hoje, pudesse entrar em campo, ser genial por 5 minutos e depois descansar junto com os reservas. Uma vez descansado, entraria em campo novamente e seria genial outra vez…Já imaginou?
No palco, ele se mexe como se ali fosse a sua casa - bom, ali é a sua casa.
A Orquestra faz muito bonito, a banda do Hermeto faz ainda mais, porque sorri ao fazer.
Mas fico realmente viajando no Hermeto parado no banco. Primeiro porque o banco está em cena; Hermeto parado é portanto parte do show.
Agora está sentado assistindo a Orquestra. Suas mãos batucam nos joelhos, que se movem pra lá e pra cá; já seus pés acompanham a levada no exato ritmo que ela está sendo tocada. Vai ser assim o tempo todo, em todas as músicas.
Vou fundo nessa viagem de curtir o Hermeto no banco. Reparo, por exemplo, que ele bate palmas ao final de cada música tocada pela Orquestra e só pára de bater palma quando o Barbican inteiro parou. Estivesse na plateia e julgaríamos o Hermeto como um dos mais entusiasmados espectadores.
Ele assiste ao show com uma atenção meditativa. Não tira os olhos da banda, não se distrai com nada. Os outros músicos, quando não estão tocando, por outro lado, às vezes cochicham entre si, tomam água, olham pros lados, tiram fotos. Tudo feito respeitosamente e com discrição, claro. Mas Hermeto e Itiberê devotam sua atenção plena e absoluta aos músicos que estão no palco.
(Se estamos vivendo a economia da atenção, penso, Hermeto vive na abundância da atenção. O que o Barbican presencia é mais do que um espetáculo artístico: estamos testemunhando um senhor de 85 oferecer integralmente a commodity mais escassa do mercado a um bando de jovens).
Penso no tamanho destas atitudes. É um senhor de 85 anos, caramba, ele poderia ficar no camarim enquanto não toca, ele poderia ter colocado o banco fora do nosso olhar. Mas ele fica no palco.
Preciso prestar atenção no show também, então tento controlar essa minha obsessão por Hermeto parado. O mais legal da Orquestra é Jovino. Seu cabelo branco armado e despenteado contrasta com sua roupa formal (camisa branca e calça preta). Ele dá tudo como regente: seu corpo mexe o tempo inteiro, sua boca está sempre aberta, como se cantasse, e seus olhos ficam sempre arregalados, como se tudo aquilo fosse uma questão de vida ou morte. É cria do Hermeto, claramente.
O palco tão milimetricamente dividido ao meio parece sem querer expor 2 ideias de mundo, à esquerda, a brasileira, mais colorida, improvisada, os músicos sorriem o tempo todo, se olham, olham para a Orquestra, querem jogo!; pela direita, a da Orquestra, mais neutra, repleta de concentração, onde tudo é tocado perfeitamente, mas se miro apenas as suas faces, eles poderiam estar preenchendo planilhas - não todos, mas a maioria.
O show termina com a banda de Hermeto e a Orquestra tocando juntos pela primeira e única vez. A canção é "Juvenal em Grumari". Os dois mundos juntos funcionam muito bem. O futuro da humanidade talvez seja uma canção de Hermeto tocada por todos nós juntos.
Fim do show. Ele sai como entrou: caminhando-dançando devagar.
É o ser mais musical que eu já vi, penso, enquanto volto pra casa. É como se eu tivesse feito uma prática de meditação, sinto, ao perceber meu espírito renovado, brincalhão, animado. Essa sensação irá durar alguns dias.
"Vê-lo ao vivo não te dá a impressão que você encontrou a fonte primária da música?", me resume brilhantemente um amigo que assistiu ao mesmo show.
*
(Este texto começou tentando emular os 140 caracteres do Twitter, uma homenagem a esta empresa cujo futuro, ao que parece, é mais importante do que o futuro do Brasil ou mesmo o vir-a-ser do planeta, a julgar pela importância que os jornais dão ao tema. Eu não tenho Twitter nem nunca tive). Porque ou somos todos mestres do haicai, ou ficar tentando entender e explicar o mundo com 140 caracteres é a maior perda de tempo).
Bônus track: Silvia Perez Cruz
Teatro de La Zarzuela, Madrid
Dias depois, tive a sorte de assistir a um show da cantora e compositora catalã Silvia Perez Cruz no estonteante Teatro de La Zarzuela, em Madrid. Sozinha no palco, ela aparece rodeada de guitarra, violão, bumbo leguero, teclado e pedais, além da voz, uma das mais poderosas que eu já escutei. Entre uma canção e outra, Silvia entrega histórias sobre a composição das faixas e sobre as aspirações deste seu novo espetáculo, Farsa: genero imposible. É uma espécie de show "violão e voz" que é tão comum para nós no Brasil, mas antes da primeira música já era possível perceber algumas diferenças.
A primeira coisa que me chama a atenção: o público que ocupa os 1.242 lugares do teatro é formado por jovens hipsters recém-saídos do segundo grau, universitários, adultos e senhores e senhoras na casa dos 70-80 - são muitos cabelos brancos na plateia. Tento pensar em uma artista brasileiro tão jovem quanto Silvia (ela tem 39 anos) que atraia todo este arco de gerações para dentro de sua música, mas não consigo encontrar um nome.
Outra novidade, ao menos para mim, é a atmosfera pacífica que ela instaura nas conversas entre-canções. Embora fale de temas profundos - maternidade, pandemia, guerra - não há na sua voz e na sua postura nenhum tom "lacrador", o tom do papo é sempre casual e natural, humilde até, ela não soa como quem está querendo ensinar nada a ninguém. Silvia faz rir e fala sério com muita facilidade. Ela parece saber que fala com um público diverso.
(Um tema é mais abordado do que os outros: o seu recente interesse sobre a fragilidade humana, a sua busca pessoal por conviver melhor com as suas partes "não perfeitas" e como isto acabou e tornando o mote do seu novo disco. Outro tema é o poder curativo da música, ela reforça que falar isso pode soar banal, especialmente aos mais velhos, mas que é preciso acreditar no poder invisível dos sons como ferramenta para nos ajudar. Penso, de novo, em Hermeto e o efeito que a sua música teve em mim por dias a fio).
Por fim, há um aspecto técnico. Esse formato "voz, violão e conversas" tem ganhado força no pós-pandemia, muito por causa das dificuldades financeiras de se montar um show com muitos músicos no palco. Mas, devo dizer, às vezes o resultado não é tão interessante. Sinto, em resumo, que muitos artistas creem que lhes basta ter as canções, sentar e tocar; e que isso será o suficiente para que a atmosfera mágica de um espetáculo se instale automaticamente, como se todos fossem Gil e Caetano, só para citar dois que, sim, são capazes de fazer você se sentir no Cirque du Soleil só de posicionarem uma cadeira no centro do palco e sentarem-se nela com o violão a tiracolo.
É precisamente nesse aspecto que o show de Silvia me chama a atenção pela terceira vez, porque ela não cai nessa armadilha; com um uso cirúrgico de luz, capitaneado por uma iluminadora jovem, e de som, dirigido por um experiente técnico, Silvia manipula diferentes climas, indo do experimentalismo noise à tradição da canção espanhola, passando pelo folk inglês e até por uma versão de "Asa Branca", ora deixando a música criar momentos de tensão, ora convocando (e ensinando) a plateia a cantar com ela uma nova canção. E o público nunca sabe exatamente o que vem pela frente.
"Farsa" é um show roteirizado, super ensaiado - e por isso extremamente trabalhoso -, e no entanto a sensação que se tem na plateia é de que fomos à casa de Silvia escutá-la falar e tocar por 2 horas - e aqui ela me lembra Hermeto novamente.
Ela não faz concessões nem aos caretas, nem aos moderninhos, e desconfio que o fato de ambos irem para casa satisfeitos (o espetáculo termina com uma longa salva de palmas que parecia que não ia terminar, e minutos depois a lojinha com vinis e CDs estava abarrotada de gente) é porque se vê o respeito que ela devota ao próprio trabalho e ao público - e aqui eu enxergo Hermeto pela última vez.
Sabe quando assistimos a um filme e esquecemos que aquilo ali é tudo uma grande atuação dirigida por uma equipe enorme? É esse efeito que Silvia alcança. Sozinha no palco.
*
MPB meditativa. Canções brasileiras de artistas famosos e desconhecidos, de gerações e vivências diferentes - como Hermeto, 85, e Silvia, 39 - mas que parecem vir do mesmo barro. É por aí a playlist Mauritation, que meu amigo, curador musical e companheiro de trabalho Maurício Ávila fez especialmente para o canal da Solar Musicbox no Spotify. É uma das melhores seleções que ouvi este ano. Indico pra todo mundo em busca de algo que acalme a mente e alimente o coração - como Hermeto fez com o Barbican, ele que está na playlist com "Macia":
Já foi a um show do Hermeto, conhecia o trabalho da Silvia Perez Cruz, curtiu a playlist do Maurício? Comenta que eu respondo: