Minha história com Nick Drake, que partiu há exatamente 50 anos
E o lançamento da versão de Flavio Tris para From The Morning.
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1. Um problema de saúde me fez viajar à força para a casa dos meus pais, no interior. Era agosto de 2007. Fiquei lá por um mês, e em boa parte desse tempo eu precisava de uma ajudinha para me movimentar. De modo que sempre tinha alguém por perto falando “deixa que eu pego pra você", “não precisa se levantar", essas coisas. Uma dessas pessoas era minha irmã. Um dia, uma pessoa me emprestou o filme “A Hora de Voltar". Tenho claro na memória essa cena: minha irmã no sofá, eu em uma poltrona, a TV ligada, o filme passando. De repente, toca uma música. A introdução é no violão, então passa um pouco entra um piano, uma bateria algo jazz-bossa nova e uma voz suave, porém firme, canta uma letra que de cara não entendo nada. O filme acaba, eu e minha irmã vamos para o jardim da casa, ficamos falando sobre o filme por um tempo mas eu lembro de dizer pra ela: olha, acho que aquela é a música mais bonita que eu já ouvi na vida.
2. Demora uns dias para eu descobrir o nome da canção, One of These Things First, e o nome do autor e intérprete, um tal de Nick Drake, músico inglês, morreu precocemente aos 26 anos. Deixou só três discos gravados, há algumas fotos dele, mas nenhum vídeo, é o que eu fico sabendo. Lembro de nas semanas seguintes ficar lendo a página Wikipedia dele antes de dormir, às vezes com dificuldade para entender alguns trechos em inglês, então eu simplesmente parava numa foto que mostrava o seu túmulo embaixo de uma árvore em meio ao que me parecia um enorme jardim. Era triste, mas pacífico. Era bonito e também misterioso.
3. Os próximos anos dessa história são de mergulho profundo nos três discos. Ouvia tanto que era impossível quem estava à minha volta não ouvir também - e meu irmão passou a ouvir, minha irmã também, alguns amigos queriam saber mais sobre aquele cara sobre o qual eu estava obcecado. Um dia, um amigo foi para a Europa e me trouxe de presente o DVD “A Skin Too Few". Foi a primeira vez que eu soube mais sobre a sua história: onde nasceu, como era a sua casa, onde estudou, o que gostava de fazer, como foi seu último dia. Até então, nada disso tinha me causado muito interesse, e é um pouco assim até hoje.
4. O que aumentava era meu interesse pela música. Como são apenas três discos (e algumas gravações caseiras que foram sendo lançadas ao longo dos anos), a experiência de ouvir Nick Drake sempre foi uma experiência de escuta lenta. Eu poderia ouvir a obra inteira em duas horas, se quisesse. Mas o que aconteceu é que eu ainda estou ouvindo a obra inteira lá se vão 17 anos. Tem alguma coisa parecida com, sei lá, sentar-se em frente uma montanha e ficar mirando-a por horas. O que você passa a ver e a sentir? Tem alguma coisa parecida também com prestar atenção na sua respiração, o princípio básico da meditação. O que acontece com você depois de algumas horas, dias, anos fazendo constantemente uma só coisa?
5. Em alguns momentos, a minha relação com a obra do Nick Drake saiu de casa e se transformou em objeto de trabalho. Em 2017, eu criei um projeto para promover a música dele dentro do Brasil. Chamei-o de Lua Rosa, a tradução para o português de Pink Moon, e fizemos shows tocando suas canções e oficinas sobre a sua vida e obra. Viajei para lugares que nunca imaginei, conversei com pessoas que conheciam a obra e a história dele profundamente, como o produtor Joe Boyd e o fotógrafo Julian Lloyd, e cheguei a me apresentar, junto com a minha companheira Ju, em um teatro de Tanworth-In-Arden, junto a outros fãs ao redor do mundo.
6. O projeto se aquietou nos últimos anos. Às vezes alguém me pergunta, “e aí, não vai fazer mais nada?", e fico culpado. Mas, ao escrever esse texto hoje, percebo que o projeto nunca parou. Ele só trafega em um via de tempo mais esticada, lenta, muito parecida, ao fim, com a minha experiência de escutar Nick Drake.
7. No ano passado, eu soube que um dos meus artistas brasileiros preferidos estava tocando uma música do Nick Drake em seus shows. O artista é o Flavio Tris, que morava perto da minha casa em São Paulo, e cujas canções sempre me soaram meio vizinhas de muro das do Nick Drake. Muita beleza, muita sensibilidade, mas quase nada de adornos sonoros ou poéticos. E um tanto de silêncio. Sabe como é? A música que o Flavio tinha incorporado ao seu repertório é From The Morning, que, por ser a última faixa do último disco lançado por Nick Drake, é vista por uns e outros como um testamento, a sua última palavra (e som) antes de partir. E, de fato, ela tem uma atmosfera meio celeste e uma letra que se assemelham a orientações dadas por alguém que encontrou alguma transcendência. O trecho sempre citado é justamente a frase que está inscrita na pedra do seu túmulo:
And now we rise, and we are everywhere.
8. No dia 25 de novembro de 1974, os pais de Nick Drake o encontraram em seu quarto, sem vida. Hoje faz, portanto, 50 anos que isso aconteceu. O pensamento ocidental tende a ver essas datas como tristes, às vezes mórbidas, mas como budista, eu aprendo que o dia da morte é só mais uma etapa na viagem do nosso contínuo mental. E lembro do poema escrito pelo monge vietnamita Thích Nhất Hạnh em Contemplação sobre Não-Vir e Não-Ir:
Nascimento e morte são apenas portas pelas quais passamos,
limiares sagrados em nossa jornada.
Nascimento e morte são um jogo de esconde-esconde.
Então ria comigo,
segure minha mão,
vamos dizer adeus,
diga adeus, para nos encontrarmos novamente em breve.
Nós nos encontramos hoje.
Nós nos encontraremos novamente amanhã.
Nós nos encontraremos na fonte a cada momento.
Nós nos encontramos em todas as formas de vida.
9. É nesse espírito de celebração da existência de Nick Drake que lançamos, hoje, em todas as plataformas de música, a versão de Flavio Tris para From the Morning.
10. O lançamento é do selo Pequeno Imprevisto em parceria com o Lua Rosa, e foi um trabalho feito por muitas mãos, começando pelo próprio Flavio, que assina a voz e o violão, e a sua banda fantástica formada por Kiko Woiski no baixo, Conrado Goys na guitarra e Gui Augusto na percussão. A produção musical é deles todos com meu irmão de fé e companheiro nessa estrada da música, Otavio Carvalho, que também gravou, mixou e masterizou a faixa. A Pâmela Prudente é a responsável pela comunicação digital desse trabalho, e eu estou a cargo da assessoria de imprensa e da direção executiva do projeto todo.
Espero que vocês gostem, e se puderem, por favor, também escutem a versão original e todos os discos do Nick Drake.