É começo de outono no Brasil. Um sol preguiçoso oferta alguns raios, insuficientes para aquecer o corpo. Vou ao quarto, encontro uma blusa de frio que está esquecida no fundo do armário, visto-a e volto para a sala, onde o computador me espera ligado, e no caminho reparo que a blusa está um pouco apertada em mim. É o dia número 16 da primeira quarentena, há dias não saio de casa, fui apenas uma vez ao supermercado, o resto dos dias eu só me movo do quarto para a sala, da cozinha para o jardim. Faço o que todos os brasileiros remediados estão fazendo, assisto filmes, leio livros, procuro cursos online, ouço especialistas, atualizo os sites de notícias, testemunho nascer novas formas de divisão social (os que acreditam no vírus, os que não acreditam; os que são contra ficar em casa, os que são a favor) e ligo para os pais e familiares próximos para dizer coisas como "isso vai passar logo, não tem como fechar o mundo por mais de 15 dias", e o que se tornou um clássico dos filhos preocupados, "pelo amor de Deus vocês parem quietos em casa, não fiquem saçaricando por aí, esse negócio é sério".
Naquele dia, eu decidi que não iria trabalhar. Os shows, os artistas, os clientes, os projetos, os textos, as ideias, o futuro, tudo tinha finalmente parado, como uma velha máquina que demora a desligar. E o pouco que havia para fazer não era tão urgente. Sentei na frente do computador e separei diversos discos recém lançados que eu ainda não tivera tempo de escutar. Foi ali que eu ouvi "Birds", do grupo britânico da Lata com o artista brasileiro Luiz Gabriel Lopes, pela primeira vez. A música tinha uma melodia melancólica com uma letra esperançosa, uma harmonia à la Paul McCartney com a voz aconchegante do Luiz Gabriel.
"Que pérola!", eu lembro de pensar. Não era a primeira vez que um espanto assim me ocorria naqueles dias, ter tido uma pausa das tarefas profissionais havia me dado tempo para escutar música sem que isso significasse trabalho, me permitiu apreciar sem necessariamente produzir algo a partir daquilo; de repente, por causa da parada global gerada por uma doença, eu podia voltar a escutar música da mesma forma que eu fazia quando era adolescente, deitado no chão da sala olhando para o teto enquanto canções ressignificavam todo o espaço, arrumando a casa quando do nada uma música toca e faz parar tudo porque preciso anotar o nome daquele artista, daquele disco, para então depois mergulhar em discografias, referências, conexões. Quantas canções especiais eu era capaz de descobrir praticamente o tempo todo - porque eu estou há anos ouvindo música o tempo todo - mas que nos últimos tempos pareciam apenas ser um grande borrão? Se alguém me pedisse para indicar uma banda, um disco, eu não tinha nada, e no entanto o meu tempo inteiro era dedicado justamente a isso, a escutar música. O que tinha acontecido? A minha escuta tinha perdido uma qualidade essencial, que é a atenção, e não existe atenção sem dedicação de tempo, e todo tempo que eu tinha para a música não era mais para apreciá-la ou estudá-la, mas para trabalhá-la, o que definitivamente não era a mesma coisa.
No final da tarde, quando os discretos raios de sol já tinham desaparecido por completo e o frio me obrigava a fechar as janelas da casa, eu voltei ao computador, abri o Spotify, criei uma nova playlist e arrastei para lá oito músicas, sendo a oitava justamente "Birds". Pensei que ter um lugar, ainda que digital, onde eu pudesse guardar as minhas descobertas seria uma ideia eficaz. Editei o nome da playlist para "Rádio Solar". Antes de fechar a tela, ainda ouvi "Birds" mais uma vez.
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É começo de primavera em Londres. O sol acorda cedo, está animado, é um daqueles dias em que o sol parece fazer questão de garantir a todo mundo que este inverno acabou; sim, este inverno em especial, que chegou quando ainda era outono e depois ficou enrolando para ir embora, durando muito mais do que os 3 meses combinados - até a neve apareceu neste mês de abril - o sol naquele dia estava claramente espalhando a mensagem de que o inverno era algo que deixar pra trás; que agora era hora de voltar para as ruas, caminhar por aí sem sentir medo do frio e nem o peso dos casacos. Desço as escadas do pequeno flat onde vivo em Londres, que deve ter um décimo do tamanho da casa que eu vivia no Brasil quando a pandemia começou, e mesmo assim não raro eu tenho a sensação de que ainda vivo no mesmo lugar, talvez porque faz pouco tempo eu consegui trazer parte dos meus discos de vinil, e a área que eles ocupam na casa de Londres é a mesma da casa São Paulo, uma espécie de região central da sala. A bandeirinha budista também é a mesma, assim como alguns livros. Talvez a nossa casa seja algo que a gente carrega por aí, penso.
Abro a porta e encontro a rua brilhando, as cores (das placas de trânsito, do casaco vermelho de uma mulher que passa por mim, do letreiro verde do mercadinho) estão intensas em contraste com o marrom das casas de tijolinhos. Deixo a Beethoven Street, viro à direita na Dart Street e logo entro na Third Avenue, que me levará até a Harrow Road, onde vou cruzar o canal, deixando Queens Park para trás, e acessar o outro lado, onde começa Notting Hill. Meu destino é o Café Lisboa, que fica na Golborne Road. Estou indo encontrar Chris Franck, o autor de "Birds".
Conheci Chris através de Luiz Gabriel Lopes. Quando eu comentei com Luiz que eu estava me mudando para Londres, ele disse que iria me apresentar a Chris, que vive na cidade há décadas, embora tenha nascido na Holanda. Luiz tinha acabado de assinar com o Pequeno Imprevisto para lançar seus próximos discos, e também estava conversando com Chris para lançar estes mesmos álbuns na Inglaterra, através do selo do Chris, o Da Lata Music. Ficou combinado que eu e Chris faríamos uma reunião por telefone para conversarmos sobre esta parceria. Eu ainda estava no Brasil quando o telefone tocou e era o Chris do outro lado. Eu estava super nervoso porque seria a minha primeira reunião em inglês, era como se a minha vida de imigrante já estivesse começando, de certa forma. Mas em 2 minutos de papo o Chris falou "quer fazer em português?", e a frase veio clara, com um sotaque próprio. Topei.
Neste dia, eu me lembro que ficamos uma hora e meia ao telefone, e boa parte da conversa foi sobre a vida - porque eu estava indo pra Europa, o que ele achava de Londres, ele me contou as diversas visitas que fez ao Brasil desde os anos 90, reclamamos da política. Desliguei o telefone animado. Meses depois, em dezembro de 2020, quando me mudei para Londres após viver uma temporada na Itália, Chris me ligou e propos de nos encontrarmos. Era de manhã quando ele tocou a campainha da minha casa, a pandemia ainda estava estranha então achamos melhor ficarmos ao ar livre. Eu dei de presente para ele uma ecobag com discos brasileiros que eu lancei ao longo dos anos, era um gesto bem brasileiro, e mineiro, de dar presente sem precisar de uma razão para isso; ele ficou feliz e saímos caminhando pelo bairro, ele me contou que havia morado ali por muitos anos e que achava aquela a área mais legal de Londres, porque ali ainda havia aquela energia do underground que foi perdida em outras vizinhanças, lembro que fizemos exatamente esse caminho que estou fazendo agora - cruzar o canal rumo ao Café Lisboa - enquanto ele me contava da comunidade jamaicana que veio viver aqui depois da Guerra, de como isso aos poucos foi atraindo artistas locais até se tornar o bairro mais criativo da cidade, ali nos anos 70. Entramos no Lisboa, fiz uma foto dele escolhendo o que ia comer, mandei para Luiz Gabriel, depois caminhamos por cerca de duas horas por Notting Hill até voltarmos à porta da minha casa. Na hora da despedida, nos abraçamos, esquecemos completamente da pandemia, e uma mulher que passou por nós naquele exato momento nos repreendeu, disse algo como "não pode abraçar". Rimos e combinamos de nos encontrar de novo dali em breve.
Dali em diante, estreitamos nossos laços de trabalho, lançamos 2 discos do Luiz Gabriel pelos nossos selos e trabalhamos juntos em outros projetos. Entrevistei-o para algumas matérias que escrevi para o Brasil, fiz assessoria de imprensa de um lançamento dele - ele chegou a dar uma entrevista longa para a Rádio USP, toda em português - e produzi uma sessão de fotos dele em Hampstead Heath, para a qual convidei minha amiga Camila Pastorelli para fazer as imagens. Ele me apresentou para músicos e amigos, me deu dicas de um monte de coisas e fomos a alguns shows juntos, onde ele sempre fez questão de me apresentar a todo mundo, falando do selo, levantando minha bola. No release que escrevi para divulgar o single "Jungle Kitten", da sua banda Da Lata, resumi sua trajetória assim:
O músico, produtor e compositor Chris Franck nasceu na Holanda e vive na Inglaterra desde os 7 anos de idade. Uma das principais marcas do seu trabalho é a pesquisa de ritmos do mundo todo e sua conexão com artistas de diferentes países, em especial do Brasil. Ao longo dos anos, ele já fez parcerias com Marisa Monte, Bebel Gilberto, Marcelo Jeneci, Chico César, Luísa Maita, Kassin e Luiz Gabriel Lopes, dentre outros.
Sua carreira profissional na música começou nos anos 90, quando fundou o grupo Smoke City. A banda - fortemente influenciada pela música brasileira, com diversas músicas cantadas em português - estourou mundialmente com o sucesso "Underwater Love".
Nos anos 2000, ele formou o duo Da Lata, cuja ligação com a música brasileira já está no próprio nome escolhido para a banda. O grupo já lançou 5 discos: Songs From The Tin (2000), Serious (2003), Fabiola (2013), Refab (2014) e Birds (2019). Em maio de 2021, o Da Lata lançou sua versão para a música "Jungle Kitten", do pianista gaúcho Manfredo Fest. A versão em vinil do single esgotou rapidamente no Reino Unido.
Como produtor, Chris recentemente abriu seu próprio selo, o Da Lata Music, que já lançou 2 discos do compositor mineiro Luiz Gabriel Lopes: "Sóis" e "Sóis: Remixed", ambos em 2021.
Em agosto do ano passado, o Da Lata foi escalado para tocar no We Out Here, um festival no meio do mato capitaneado pelo DJ Gilles Peterson. Chris me arrumou 2 ingressos e lá fui eu, acompanhado do meu irmão, pegar um trem em Kings Cross e uma hora depois adentrar uma imensa floresta e encontrar lá dentro artistas do mundo todo e um público pacífico e animado. Naquele dia, nunca me esqueci, pensei que eu estava há milhares de quilômetros de casa, onde era normal ir a concertos cujos músicos no palco eram meus amigos, e agora, ao ver Chris subir ao palco com o Da Lata, pela primeira vez eu tive essa sensação estando aqui. O show do Da Lata foi matador, uma banda azeitada que fez todo mundo dançar. Depois do show apresentamos ao Chris o cigarro paiero, que ele nunca tinha visto.
Continuamos nos vendo para tomar café e conversar sobre a vida, a maioria dos encontros era no Lisboa, mas eu também ia até ele. Certa vez fomos a um pub perto da casa dele, a filha dele apareceu com um cachorro, eu estava com uma câmera analógica na bolsa e fiz diversas fotos deles juntos. Dias depois, quando o filme chegou da revelação, as fotos tinham saído escuras demais, mas foi um momento tão bonito que eu fixei na memória cada uma das poses. Ah!, se eu pudesse revelar o que eu guardei comigo!
Um outro dia, caminhando pelo canal - estávamos fazendo o trajeto de volta do Lisboa para a minha casa - contei a ele sobre como a música "Birds" tinha me tocado. Na água, algumas pequenas embarcações descansavam; dois homens com jeito de piratas conversavam em frente a um dos barcos, eles usavam chapéus e tomavam cerveja, passamos por eles e acenamos sem falar nada. Chris me contou que estava dirigindo quando Luiz Gabriel lhe mandou a melodia de "Birds"; ali no carro, ele disse, a letra já lhe surgiu à mente, veio quase pronta; quando ele chegou em casa, apenas terminou de acertar as palavras e mandou de volta para o Luiz. Minutos depois, ao nos despedirmos, Chris me perguntou se eu poderia sugerir a ele o trabalho de algumas cantoras e compositoras brasileiras da nova geração, ele estava começando a trabalhar em um novo disco do duo The Quiet Ones, formado por ele e Marc Brown, e pensou que seria legal fazer algo com alguém novo. Horas depois enviei uma mensagem a ele com dois nomes e seus respectivos discos. Um era o da artista moçambicana Lenna Bahule, que na década passada morou em São Paulo; o outro era o da baiana Luedji Luna. Dias depois ele me ligou dizendo que tinha se encantado com o trabalho das duas, será que elas topariam participar do disco? Arregacei as mangas e fui atrás de falar com elas. O ano de 2021 terminou com tudo ajeitado: elas não só tinham topado, como cada uma iria compor com Chris uma canção.
Chego ao Café Lisboa nesta manhã de primavera de 2022 e avisto o Chris numa das mesas externas. Ele está de gorro e veste um casaco pesado. Quando me aproximo, ele se levanta e comenta que estamos usando a mesma cor de camisa (verde) e a mesma cor de cachecol (laranja). Brinco que eu quero ser ele quando crescer, o que é em parte uma verdade. Neste dia, passamos cerca de 3 horas sentados naquela mesa, tomando cafés e comendo os deliciosos croissants de queijo. Falamos sobre muitos assuntos, como sempre, mas um deles me parece simbólico: o fato de que, no dia 19 de abril, lançaríamos a música do The Quiet Ones com Lenna Bahule. E em junho a música com a Luedji Luna. Ambos pelo meu selo Pequeno Imprevisto.
Antes de nos separarmos, cada um pros seus afazeres, lembramos dos próximos encontros: uma aula de maracatu, que ele já frequenta e quer que eu conheça; e um show do Hermeto Pascoal, que eu o chamei para ir comigo e com a Ju. Pego o caminho de volta para casa, e enquanto cruzo o canal mais uma vez, penso o quanto é interessante a ideia de fazer um novo amigo à essa altura da vida, isso não é muito comum depois de uma certa idade. E fazer um amigo quando se vive fora do seu país de origem, especialmente nesta cidade em que há tanta solidão, em que as pessoas são polite e fechadas na mesma proporção, me soa ainda mais forte, mágico até, talvez algo que somente a música poderia ter feito possível. Aprendo na convivência com Chris que ter um amigo é ter uma casa.
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"Tina", a música do The Quiet Ones com Lenna Bahule, está no ar em todas as plataformas digitais. Você pode ouvir aqui.
Conheça também três dos principais grupos do Chris: o Smoke City (encerrado em 2002), o Da Lata (ativíssimo) e, claro, o The Quiet Ones.
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A Rádio Solar, que nasceu no dia em que ouvi "Birds", é atualizada todos os dias por mim há exatamente 2 anos. Ela está com muitos ouvintes novos, o que me deixa feliz. Ouça aqui.
Texto maravilhoso sobre um encontro! Que bom poder ter um amigo!