No overground que naquela quarta-feira me tirava de Kensal Rise, no norte de Londres, e me levava a Homerton, lado leste da cidade, um homem de porte avantajado, calças largas e usando um gorro mal encaixado na cabeça sentou-se em uma das poucas cadeiras que restavam vazias naquele movimentado e gelado início de noite, puxou seu celular do bolso e ligou para alguém. "E aí… cê sumiu! Cê tá bão? Tô te ligando porque tive uma notícia boa hoje…", ele começou, em voz alta, à vontade, e daí por diante desatou a falar sobre a sua vida financeira, soltando números sem nenhum freio, como se estivesse sozinho, porque obviamente ele achou que nenhum dos outros passageiros entenderia português - ou brasilês, ou mineirês. Falar uma língua que ninguém à sua volta compreende é ter o superpoder da privacidade instantânea onde quer que você esteja.
*
Subimos as escadas reparando nos cartazes de filmes que tomavam as paredes - Parallel Mothers, do Almodóvar, dividia espaço com outros lançamentos cujos nomes não identifiquei. Já nos últimos degraus é que escutamos um burburinho de vozes animadas, animadas demais, o que me soou algo deslocado do objeto da minha visita àquele local: uma audição às escuras do disco "Pink Moon", de Nick Drake, cujo aniversário de 50 anos é celebrado nesta sexta, 25/02.
*
Um amplo salão iluminado com mesas espalhadas por todo lado, ocupadas por adultos de 30 e poucos anos e senhoras descoladas. No fundo, um pequeno bar no típico estilo pub inglês; do lado direito, uma porta cujo letreiro indica ser ali a "sala de exibição". Esse é o The Castle, um cinema de rua que fica em Hackney, um bairro antigamente fabril e hoje um dos centros de cultura underground de Londres. Pergunto a uma funcionária se podemos levar bebidas para dentro do cinema, ela diz que sim, é claro, então pegamos duas pints e entramos. A sala de exibição é pequena e tem uma atmosfera aconchegante. Está lotada. Vejo alguns casais, turmas de amigos, outros vieram sozinhos. As poltronas amplas ajudam na difícil tarefa de coexistir com as nossas blusas e cervejas. Faltam dois minutos para a sessão começar.
*
É proibido falar, é proibido cochichar e é proibido cantar durante a sessão - é o que leio na tela de projeção. As regras são ditadas pela Pitchblack Playback, um projeto que organiza audições de discos clássicos ou inéditos dentro de salas de cinema do Reino Unido. A capa de "Bryter Layter", álbum de 1971 e portanto anterior a "Pink Moon", surge na tela, e só aí entendo que vamos escutar os dois discos. Embora o aniversariante seja o "Pink Moon", acho que os organizadores devem ter considerado que seus 29 minutos de duração eram insuficientes para justificar um evento. Anoto isso mentalmente: Nick Drake está sempre um pouco fora do esquema, mesmo agora, meio século depois.
*
As luzes se apagam, param as conversas que até ali rolavam como se estivéssemos num bar e "Introduction", primeira faixa de "Bryter Layter", começa a rodar. Não posso fugir de dizer o óbvio: é mágico. O escuro e uma música instrumental de apenas 1 minuto e 32 segundos de duração é exatamente a melhor forma de conduzir aquelas 60 pessoas para longe de seus celulares, de suas preocupações, de suas ansiedades, e para perto de um único sentido: o da audição. Durante os 40 minutos de audição de "Bryter Layter", coleciono momentos de percepção aguda. Em Hazey Jane II, viajo na sua voz (farei isso o tempo todo nessa noite), consigo ouvir coisas novas - sua respiração, a suavidade da pronúncia das palavras, a afinação. Graças à acústica do cinema? Eu acho, mas também porque eu sinto que estou dentro da música. One Of These Things First me dá vontade de dançar - lembro da Blubell no show de São Paulo, como ela bailava docemente enquanto cantava essa música - e, rebelde, canto baixinho quase todos os versos, talvez já um efeito da cerveja. Em Hazey Jane I eu caio no choro e em Poor Boy tento tirar todos os outros instrumentos e deixar apenas a voz e o violão tocarem na minha cabeça, como num vídeo raro que achei no Youtube no dia seguinte:
*
"Bryter Layter" é um álbum lotado de piano, sax, guitarra, backing vocal, dizem que foi uma imposição do produtor e da gravadora, que consideravam as canções ao natural esquálidas demais (não vendáveis demais?). A sessão acaba, alguém avisa que há um intervalo de 10 minutos. Pegamos mais uma cerveja e voltamos para, enfim, mergulhar em "Pink Moon". Antes, a Ju me pergunta o que achei, e meio sem ainda saber direito o que eu achei, digo que eu estava me sentindo num show. É como se a mistura do escuro me tirasse as distrações do mundo material e me permitisse fantasiar, eu digo, e o fato de fazer isso tomando cerveja me deixou com o mesmo quente na barriga que eu sinto quando estou vendo um artista no palco.
*
Qualquer um que faça uma pesquisa sobre Nick Drake não demora a descobrir que não há muito mais além do que já está publicado por aí. Foram 3 álbuns lançados em vida. Depois, músicas que ele gravou em casa com sua mãe, Molly Drake, saíram em disco ("Family Tree"). Registros caseiros de suas próprias músicas e de covers de blues, Bert Jansch e Bob Dylan se transformaram em coletâneas. Uma sessão no mítico John Peel também está disponível nas plataformas. Um livro, "Remembered for a While", organizado pela sua irmã Gabrielle Drake traz fotos, memorabília e cartas trocadas em família. E é isso. Fim. Não há vídeos. Não há sobras de estúdio. Não há diários. "É tão pouco o que ele deixou pra trás", disse sua mãe. "Além do seu legado musical… ele nunca escreveu nada, nunca teve um diário, raramente escrevia seu próprio nome em seus livros… É como se ele não quisesse que nada dele permanecesse, exceto suas canções".
*
De um lado, há a timidez e a depressão que o tiraram da vista do público, da indústria e dos meios de comunicação; de outro, há a triste constatação de que Nick Drake se foi cedo demais, e portanto não teve tempo de criar nada além dos seus 3 primeiros discos. Por ambos os caminhos, chega-se no mesmo lugar: Nick Drake deixou uma obra que só resta ser apreciada com os ouvidos e com o exercício da imaginação. Aquele evento está propondo exatamente isso, eu penso enquanto as luzes se apagam, embora eu desconfie que, por ser um projeto mais ligado a efemérides e lançamentos, nem mesmo eles tenham se dado conta de que, no caso de Nick Drake, um público que sai de casa para dedicar toda a sua atenção à música, e apenas a ela, seria um público que provavelmente ele nunca teve.
*
Há a voz. Há o violão. E um piano em Pink Moon, a canção. As letras, os silêncios, a ordem das músicas. Há "Horn", uma faixa instrumental de pouco mais de 1 minuto que atua como um interlúdio entre o lado A e o lado B, os dedos de Nick Drake guiando aquelas notas magras, e no entanto o cinema está preenchido por este som. Há, no meio disso tudo, uma suspeita de tristeza - ela está ali, seria infantil negar, mas, ao menos no tempo-espaço aberto por este grupo de canções, a tristeza nunca vinga, se cada música fosse uma partida, a tristeza perderia em todas, mas especialmente na última, From the Morning, a derrota seria de goleada. "Então vá ver os dias, suas infinitas formas coloridas, e vá jogar o jogo que você aprendeu de manhã". É a última música do disco - e infelizmente de uma vida. E ele escolhe falar da força da manhã, a manhã que pra nós representa saúde, esperança, renovação, luz, calor. "As músicas se tornaram menos sobre outras pessoas e mais sobre ele com o passar do tempo", conta o produtor Joe Boyd. “Nick não estava depressivo quando escreveu e gravou Pink Moon", garante Cally, ex-diretor da Island Records e que atualmente cuida do espólio de Drake junto com Gabrielle. “Ele era incapaz de escrever ou gravar quando estava depressivo".
*
Em 2016, dentre os muitos sentimentos que tive quando visitei pela primeira vez Tanworth-In-Arden, a cidade em que Nick Drake passou boa parte da infância e onde morreu em 1974, um dos quais me recordo com muita facilidade é o de crer que eu havia chegado o mais próximo possível de Nick Drake, porque afinal eu andei nas ruas que ele andou, vi as paisagens que ele viu, peguei o trem que ele pegou e ainda passei um bom tempo próximo à pedra onde ele está enterrado. Mas enquanto escuto "Pink Moon" naquele cinema de Londres, me dou conta de que não, nada disso, o que sinto agora escutando seus discos com o melhor da minha atenção, posso garantir, é o mais próximo que já me senti dele.
*
As luzes se acendem devagar, todos batem palmas; algumas pessoas não se movem de suas poltronas, como quando o filme termina e precisamos de alguns segundos para voltar da viagem. As que vão rumo à porta de saída estão trocando impressões, do mesmo jeito que fazemos ao fim de uma sessão, "e aí, o que você achou?". Somente horas depois, quando já estou em casa, na cama, é que me lembro que Nick Drake não se dava muito bem com apresentações ao vivo, ele era tímido e ficava incomodado com a desatenção do público. Antes de dormir, penso que ao menos naquela noite, num pequeno cinema de Londres, eu vi todo mundo parar o seu próprio mundo só para ouvir Nick Drake.
Ufa. Obrigado por ler tudo isso. Aqui trago alguns links relacionados:
- Conheça o projeto Pitchblack Playback.
- Em 2018, criei “Nick Drake: Lua Rosa", o primeiro projeto brasileiro em sua homenagem. Foram 4 shows (2 no Sesc 24 de Maio, 2 no Itaú Cultural), todos com lotação esgotada; uma oficina no Sesc 24 de Maio sobre sua vida e obra ministrada por mim e pelo diretor musical dos espetáculos, Regis Damasceno; e a produção de uma série de conteúdos inéditos em português, que incluiu um minidocumentário que estreia em 2022, um perfil no Instagram (@nickdrakeluarosa) e a criação de um mailing de fãs, o Clube Lua Rosa.
- A convite do Itaú Cultural, escrevi sobre os três discos oficiais de Nick Drake.
- E nesta playlist, Regis e eu selecionamos cada um 5 músicas que consideramos essenciais na obra do autor.
Se quiser trocar ideias sobre Nick Drake, Londres, música ou até sobre a guerra, é só me escrever: eduardo@solarmusicbox.com
E se você acha que alguém vai curtir esse texto ou essa newsletter, é só mandar o link eduardolemos.substack.com para elas se inscreverem. É grátis. :) Até a próxima!
É demais isso de ir a um lugar ouvir um disco ao lado de outras pessoas!