Saindo do avião
Retornar ao país onde eu nasci depois de um tempo fora: isso produz um som que começa vazio (mas não é silêncio), e vai ganhando arranjos conforme os segundos avançam. Essa cancioneta de chegada começa com as vozes das pessoas, depois o som das rodas de malas quando tocam o chão frio do aeroporto. Há letra nessa música que se constrói enquanto caminho: são as placas que leio e entendo naturalmente, entendo até de olhos fechados, como quando eu estou cantando um grande hit. Essa canção ganha ares apoteóticos quando as portas do aeroporto se abrem, e eu acesso a rua pela primeira vez. É um final épico, todos soando juntos: os carros, os gritos, até o sol faz som.
Saindo do aeroporto
A atendente do café que escuta a nossa conversa - estamos procurando a pessoa que veio nos buscar no aeroporto - e, ao perceber que estamos perdidos, não demora a adicionar a sua própria voz ao papo. É um feat. completamente inesperado para quem vive atualmente na Inglaterra, terra em que desconhecidos mal se olham nos olhos, quanto mais se meter na conversa alheia. "Será que vocês não estão no terminal errado?" é a sua participação. Ela estava certa. Agradeço muito, agradeço até demais, e a minha voz sai esganiçada como se fosse um instrumento precisando ser afinado em português.
Tomando um café e comendo 6 pães de queijo
O som ao redor de mim mudou: pessoas falando português do Brasil. As mais tranquilas tem musicalidade. "Toda pessoa boa / soa bem" (Gilberto Gil). Uma amiga russo-italiana me disse que todo brasileiro fala cantando, mas a verdade é que às vezes fazemos mais que isso. Brasileiro, se quiser, performa enquanto se comunica: usa as mãos e os braços para produzir gestos expansivos, abre a boca larga cheia de dentes, movimenta o corpo enquanto fala. Utilizam todos os seus recursos naturais renováveis, mesmo que o objetivo às vezes seja só perguntar se no suco vai açúcar ou não. São, ao fim, artistas completos que dão tudo o que tem no palco que lhes é aberto diariamente. "Todo dia / o sol da manhã vem e lhes desafia" (Paralamas).
Comprando filme analógico na Rebouças
O volume de voz dele é baixo, e fala como se estivesse contando um longo segredo. A entonação é neutra, como uma estrada em linha reta que de tão reta pode dar sono ao motorista, ou ao ouvinte, que sou eu, neste caso. Pela capa, trata-se de um inofensivo senhor de 75 anos que ainda ama formas antigas de se tirar fotos, e gosta de puxar papo com os seus clientes cada vez mais eventuais. Só que imagem e conteúdo estão desconectados. O que ele está me dizendo é pesado.
"Lembro que coloquei minha filha em uma escola particular porque as públicas sempre foram um lixo. Na época ela tinha uns 15 anos. Sempre a protegi de tudo: não precisou trabalhar, não precisou lidar com nenhuma dificuldade da vida, não precisava pensar em nada, só estudar. Mas aí ela entra naquela escola particular. E meses depois sabe o que acontece? Ela começa a me questionar. Porque isso, porque aquilo. Uma loucura. Sabe o que tinha mudado? Professores comunistas. Co-mu-nis-tas! Naquela época eles já estavam dominando as escolas. Agora deve ser o inferno."
"Você sabia que os ingleses de verdade odeiam Londres, né? E por que? Por causa daquela mistureba de outras raças… indianos, africanos, brasileiros. Até a língua inglesa falada lá é horrível, porque foi misturada com esses sotaques todos. Meu genro é inglês. Ele prefere viver na Suíça, onde a mistura é menor. Você sabia que ingleses ricos como o meu genro querem que seus filhos estudem em escolas suíças porque lá é ensinado o verdadeiro inglês? O inglês posh?"
Ele recita tudo como se fosse uma grande criação original, mas sabemos que aquele senhor apenas se inspira em ideias que estão em domínio público, ou no zap da família.
Sinto uma repentina saudade dos sons lá de fora, a orquestra de ônibus velhos, motos velozes e ambulantes de gogós incansáveis, mas esta loja tem poderosas placas de vidro anti-ruído.
No bar, esperando o amigo voltar do banheiro
Está tocando Paralamas nas ruidosas caixas de som do bar. Uma saudade que eu não sabia que tinha: a de ser abraçado pela minha banda preferida em plena quinta-feira, 15h33.
Voltando a dirigir
Estamos compondo uma música enquanto nossas bundas doem de tanto tempo sentados dentro de um carro. "Saudade nenhuma / de viver dentro de um carro / do som que os prédios fazem quando estão nascendo / e crescendo / e dos bares do Itaim", acho que era por aí. Uma canção-lista.
Na análise
Na sala de espera da analista, toca um jazz. O Shazam me informa que é "Skylark", cantada pela Anita O'Day. Traduzo mentalmente algumas frases.
Oh, cotovia
Em seu vôo solitário
Você ouviu a música durante a noite?
Música maravilhosa
"Vou fechar a janela", diz a analista, a quem estou vendo fora do Zoom pela primeira vez. "Eu queria deixá-la aberta porque a vista é muito bonita, mas o barulho das obras lá fora está de enlouquecer".
Com medo
Com medo de me assaltarem, de pedirem meu celular, de levarem meus documentos, de me machucarem. Fico alerta, e alerta só penso em mim. Com medo de assaltarem a minha companheira, de levarem seu celular, de levarem seus documentos, de a machucarem. Ficamos dentro dos estabelecimentos, e dentro deles é como se estivéssemos ouvindo música ambiente, um Kenny G sufocante, nem perto de ser a real música brasileira, que só toca lá fora.
No Centro de Dharma
Meditação em grupo. Cantar mantras escutando outras vozes que não a minha. Espirrar e ficar com medo de tirar alguém do caminho da iluminação. Lutar para me concentrar na minha própria respiração enquanto uma moto zune lá fora, e eu perco a concentração, mas volto: um grandioso ensinamento ofertado pela rua Apinajés.
Na padaria de manhã
Quero ler o jornal mas não consigo, minhas antenas estão todas sintonizadas nas conversas que rolam ao meu lado. (Em inglês, não tenho esse costume, me desinteresso mais rapidamente. Tem a ver com o conteúdo, eu acho - em inglês, as conversas que capto em lugares públicos, em sua maioria, são dolorosamente tediosas - "como está o seu trabalho?, o que você está planejando pro seu fim de semana" etc. No Brasil, o conteúdo é sempre mais rico, em geral as pessoas querem falar de sentimentos, ou contar histórias amorosas, ou reclamar do patrão, e fazem tudo em voz alta, que maravilha!).
Outro dia na padaria de manhã
Às vezes minha concentração também vai toda para a sinfonia panificadora, a chapa que recebe de tudo e sempre devolve o mesmo som ("shhhiiiiiii"), os diferentes templates usados para se fazer o mesmo pedido (com sotaque paulistano, sem sotaque paulistano, pedidos que saem com certa vergonha, outros com alguma ousadia), a comunicação entre os atendentes e o chapeiro acontecendo somente por meio da voz, são diversos pedidos diferentes por minuto e o chapeiro não anota nada, e os pedidos muitas vezes tem detalhes capciosos ("com pouco requeijão", "com muito requeijão", "com requeijão na saída", "com requeijão à parte", "sem requeijão", para ficar apenas no que é possível acontecer numa padaria envolvendo um requeijão).
Como o chapeiro capta, registra e cria delícias com tanto caos ao seu redor? Uma síntese da condição brasileira.
Agenda de encontros
O som oco que sai de um discreto beijo no rosto em uma situação formal ("prazeeeer Eduardo, tudo bem?") e o som percussivo que sai de um rústico abraço entre amigos que não se veem há muito tempo ("pô, bicho, você tá aquiiii!").
Abrindo a janela anti-ruído às 5h57 da manhã
A massa sonora da cidade já está tocando na maior altura.
Quatro dias com a afilhada
Quando encosto a cabeça no travesseiro, a voz dela está dentro da minha cabeça.
Fazendo a afilhada dormir
Tenho que fingir que estou dormindo para que ela também queira dormir, então fecho os olhos. Tenho que fingir que estou dormindo mas dormindo mesmo, então tento produzir o som da respiração durante o sono. Mas será que eu sei fazer esse som? O único jeito é acreditar que sim, então foco na performance e esqueço qualquer reação que possa vir do público. Alguns minutos depois, arrisco abrir os olhos como quem espia a plateia da coxia: ela está dormindo. Durmo feliz por constatar que a minha audiência ainda acredita na minha arte.
Três trilha sonoras
Primeira. "Gone", de autoria de Jack Johnson, na versão gravada por ele com Ben Harper numa rádio dos Estados Unidos em 2003. Descobri essa raridade quando entrei na faculdade, em 2005. E ouvia sem parar, vidrado no encontro dos dois violões, numa época em que eu só queria tocar violão. Tornou-se naturalmente a trilha sonora dos meus primeiros anos em São Paulo. Sem querer, voltei a ouvir essa faixa dias antes da viagem, o que fez desta canção novamente virar trilha sonora do Eduardo Lemos em São Paulo. Desta vez, além dos violões, chapo nas letras. "What about your mind, does it shine?", fico pensando nessa frase muitas e muitas vezes nesses meus 10 dias no Brasil.
Segunda. Qualquer música, programa ou comercial que toca na rádio USP. Enquanto fecho as malas para ir embora, estão tocando "Lá de Angola", do Social Samba Fino, música e banda que eu não conhecia, e cujos versos de abertura me caem bem. "É preciso navegar / para poder se esclarecer / do lado de lá do mar / é preciso ver pra crer".
Terceira. "A Little Lost", do Arthur Russell. Canto essa canção em todos os banhos que tomo por aqui. O chuveiro do hostel tem um relógio interno que desliga a água após 10 minutos. A música, que tem exatos 3 minutos e 20 segundos, se torna meu guia: ao final da terceira tocada, é hora de desligar a água.
Desafinos
Falar baixo, falar pouco, ver tudo como um show ruim que sou obrigado a assistir, no máximo daqui duas horas eu posso ir embora. Depois falar alto, falar muito, sentir tudo como se estivesse há um ano assistindo a um espetáculo deprimente cujo roteiro é baseado na minha vida real. O som do fim de mundo que só eu escuto quando bato a porta com força. A cidade que nunca cala de repente parece se silenciar para me ajudar na difícil tarefa de aceitar.
De passageiro na estrada
"Tô com saudade de você / debaixo do meu cobertor / de arrancar suspiros / fazer amor". Ela dirige e canta os versos de Palpite. Depois abre o vidro e deixa o vento da estrada encher o carro. E me olha, sorrindo. Aquela cena meio filme. Mato uma saudade que eu não sabia que eu tinha, a de cantar uma música popular na estrada. E outra, um brinde, a de ver meu amor cantando uma música popular na estrada.
Nas ruas
Uma pessoa dorme na calçada enquanto, na rua, carros chiques fazem fila para estacionar em um shopping. Lembro de uma reportagem que li recentemente sobre o som que as plantas fazem quando estão felizes ou tristes, sons imperceptíveis ao ouvido humano. Eu também não escuto o som da fome, ou da dor, ou do cansaço, ou do desespero, ou da humilhação que vem do chão da calçada. Em São Paulo, a desigualdade é um refrão infinito e sem fade out.
Três quarteirões depois da clínica
Numa rua típica da área mais rica de São Paulo, cujo nome não me recordo agora, mas digamos Haddock Lobo, são quase 18h. Um casal acaba de realizar um procedimento cirúrgico tão simples quanto definitivo. A partir de agora, eles podem engravidar a qualquer momento. O céu de outono se coloca à frente deles como uma grande atração cultural gratuita. Por sorte, naquele momento, o fato da Nova Brasil FM nunca tocar músicas novas é, enfim, justificado, porque dos alto-falantes do carro é Rita Lee quem traduz aquele dia, aquela escolha, aquele exato instante:
"Perdido na cidade
Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar
Ultimamente
A gente não consegue
Ficar indiferente
Debaixo desse céu
Do meu apartamento
Você não sabe o quanto eu voei
O quanto me aproximei
De lá da Terra
As luzes da cidade
Não chegam nas estrelas
Sem antes me buscar
E na medida do impossível
Tá dando pra se viver
Na cidade de São Paulo
O amor é imprevisível como você
E eu
E o céu"
***
Muito bom Tibé! Leitura muito divertida e gostosa! Abração, bom retorno