Quando descemos do Uber, não havia ninguém na rua além de nós. Era o finalzinho da transição do dia para a noite, os postes públicos ainda emitiam uma luz fraquinha e a rua estava molhada por conta da chuva que caiu à tarde. As espaçosas casas de dois ou três andares, algumas com garagem, algo raro em Londres, começavam a acender as suas luzes internas, as rotinas familiares acontecendo no típico silêncio que domina o dia a dia dos bairros mais residenciais (pra quem morou 15 anos em São Paulo, a impressão que tenho aqui é a de viver em uma cidade do interior, falando em termos estritamente sonoros).
O relógio marcava 18h59. Era nossa primeira vez em Kingston-Upon-Thames, uma cidade ao sudoeste da capital que talvez não fosse a melhor pedida para uma terça-feira nublada em Londres, mas estávamos lá pra ver um show do Kings of Convenience - que, em teoria, era pra começar no minuto seguinte. O problema era que nada nos dava a mínima pista de que um show estava prestes a acontecer ali. Além do silêncio brutal na rua molhada e escura, não havia nenhum imóvel que se assemelhasse a uma casa de shows, nem uma movimentação de pessoas na porta de qualquer lugar. Olhamos de novo no mapa. Ele indicava que simplesmente devíamos atravessar a rua e pronto, o show é ali. Mas o que estava do outro lado da calçada era uma igreja.
O Nicola foi na frente e conforme a porta da igreja foi aparecendo na minha visão, e avistei duas ou três pessoas na entrada, e uma porta de vidro atrás delas, onde lá dentro vi mais pessoas e notei um certo ar comportado em suas fisionomias, lembro de dizer para ele, "Nico, é uma missa, não é aqui, não", mas ele não escutou. Mais uns passos e então eu entendi: o show era ali mesmo. Um cara nos pediu comprovante de vacinação, mais à frente uma mulher olhou os tíquetes e entramos. O público aplaudia o que devia ser o final da primeira música, enquanto nós buscávamos um lugar disponível; acabamos parando na parte mais longe do palco (ou do altar), do lado de um bar improvisado onde uma mulher de meia idade vendia cerveja, vinho e água.
Só então eu pude ver o que estava acontecendo ali dentro: os dois Kings of Convenience na parte de frente do altar, cada um munido de um microfone e dois violões, e só. (O altar continuava com toda a cara de altar, ou seja, acho que nada foi retirado para que os músicos ocupassem o espaço, e isso deixava a cena mais bonita e mais inacreditável também). A maior parte do público estava sentada nos longos bancos de madeira iguais aos que encontramos na maioria das igrejas, e havia um ou outro tipo perdido em pé nas laterais ou mais ao fundo, como era o nosso caso.
O show foi de uma beleza imensa. Tudo que é possível encontrarmos em disco - a amizade afinada das duas vozes, o delicado dedilhado dos violões - é replicado ao vivo com igual qualidade, com o bônus de no show você ver o quanto eles fazem isso de maneira relaxada (especialmente Erlend Oye), com uma postura no palco que seria muito natural se eles estivessem em uma roda de violão numa festa de família na Noruega. Daí que a igreja era de fato uma ótima ideia para um show tão íntimo, e acredito que este ambiente de cumplicidade deu à dupla coragem extra para seguir um setlist com menos músicas conhecidas e focar mais no disco novo, Peace or Love, que saiu em junho. Ao longo do show, fiz algumas fotos com uma câmera analógica que tenho carregado pra todo lado, neste dia eu estava usando um filme preto e branco que me deixava bastante animado com o possível resultado das imagens. Eu tinha perdido um filme inteiro uma semana atrás por conta de um problema mecânico na câmera, então aproveitei que eu estava numa igreja e, a cada clique, rezei pra que aquelas fotos alcançassem a revelação.
Quando a dupla anunciou que a próxima canção seria a última da noite, a Ju sugeriu que a gente se aproximasse do palco. Pegamos nossas coisas e fomos caminhando pela lateral direita, até que paramos junto a algumas pessoas que assistiam ao show sentadas no chão. Eu e a Ju chegamos a nos agachar ao lado delas, mas neste momento eu vi uma pequena brecha para acessar a frente do palco. Fui, levando a câmera Olympus comigo.
Parei ao lado de um cara que estava filmando profissionalmente o show. Não havia nada me separando do palco, apenas os dois degraus que levam ao altar. Fiz fotos de Erlend e Eirik Glambek tirando os violões, agradecendo o público, se abraçando, enfim, todo aquele roteiro de cenas de um final de show bem sucedido. De repente, Erlend veio caminhando para perto de mim com o dedo apontado. Achei que ele fosse falar comigo, mas ele dirigiu o dedo para o cameraman ao meu lado. Até agora eu não sei o que o cara respondeu pra ele, só sei que no segundo seguinte o dedo do Erlend passou a apontar pra mim. Só deu tempo de eu dizer: "Me?", e ele "Yes, can you take a picture from the stage?".
Subi os dois degraus e corri pro fundo do palco, enquanto Erlend e Eirik se posicionavam na outra ponta do altar, virados de costas para o público, que continuava aplaudindo e gritando. Peguei a Olympus pra tirar a foto e lembro de pensar (é engraçado como a gente é capaz de pensar algo nessas horas): 'estou tirando uma foto que só eu vou ver'. Acho que as pessoas também pensaram isso, porque estavam rindo quando levantei a câmera junto ao meu rosto para fazer a foto. Imediatamente após o clique, levantei a mão pedindo que esperassem: pus a câmera no chão - ou no palco, ou no altar -, tirei meu celular do bolso e, pronto: fiz a foto que todos queriam. Eirik veio em minha direção, "Thanks! Nice to meet you!", e eu disse "Nice to meet you too, man!". Lá embaixo, a Ju e o Nicola gargalhavam. Pegamos o trem de volta, e durante a viagem de cerca de 1 hora entre Kingston e Queens Park, cada um contou a sua versão da história. Há uma cena que se sobressai nos três relatos: o dedo de Erlend deixando de apontar para o cameraman e se movendo em minha direção, nós três pensando a mesma coisa naquele microssegundo: não é possível, não é possível!
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O filme que estava nesta câmera acabou depois de uma semana. Eu estava em Cambridge para assistir a um outro show (sobre o qual devo escrever em breve). Enquanto caminhava pelo charmoso e medieval centrinho da cidade, encontrei uma loja especializada em fotografia analógica e resolvi revelar ali mesmo. O atendente era um cara legal e ficamos conversando distraidamente sobre filmes e revelações, até que falei "tenho que ir num show às 19h, você acha que as fotos ficam prontas, tipo, até umas 18h30?", e ele disse "hum, esqueci de comentar, na verdade a gente demora uns 15 dias pra revelar". Conclusão: as fotos vão chegar por correio aqui em casa. Confesso que eu gostei disso, de esperá-las chegarem sem aviso pelo correio, reveladas por uma loja que está no mesmo lugar desde 1952, essas fotos vão ter mais essa história com elas. Enquanto isso, não me resta mais nada senão seguir rezando para que elas sejam reveladas.
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Algumas razões me levaram a começar esta humilde empreitada aqui: escrever sobre as vivências musicais que espero ter morando em Londres, apresentar o trabalho de artistas imigrantes [em breve]
e ter um espaço em que eu possa divulgar os projetos nos quais estou trabalhando neste momento. Acima de tudo, o desejo persistente de não depender das redes sociais.
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Se quiser trocar ideias, é só mandar um email para eduardo@solarmusicbox.com. Vai ser muito legal pra mim. :)
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Bela experiência e texto! Ansiosa pelos próximos!
Que legal, Eduardo! Texto leve e muito envolvente! Além de me dar vontade de retomar a fotografia analógica, também valeu como indicação de escuta do KIngs of Convenience, que eu não conheço. Na expectativa pelos próximos!